Preconceito Linguístico e UX Writing, o que eles têm em comum?

Priscilla Santos Motta
8 min readApr 29, 2024

--

NOTA: Resolvi publicar, ao poucos, alguns textos que fiz ao longo de meu percurso acadêmico. A caminhada é longa e variada, então trarei textos sobre temas como Linguística, Educação, Psicopedagogia e UX. Quero compartilhar as ideias há tempos arquivadas, para, quem sabe, ajudar na caminha de alguém. 😊 Este primeiro texto foi escrito em 2022, para uma disciplina da pós-graduação. Boa leitura!

Imagem de Freepik

Se você é uma pessoa que trabalha com Língua Portuguesa, com certeza já ouviu falar em preconceito linguístico. Mas, se não ouviu, não tem problema, continua aqui que logo você vai estar super por dentro do assunto.

Antes de entrarmos no tema, faça uma reflexão: você, ou alguma pessoa conhecida já teve o seu jeito de falar ridicularizado? Presenciou coisas, como: fulano fala errado, o português certo é o escrito, você não sabe português, o brasileiro estragou a língua dos portugueses? Todas essas situações são características do preconceito linguístico.

Infelizmente, isso acontece o tempo todo. Uma hipótese para justificar esse preconceito é o fato de relacionarmos, culturalmente, a língua escrita como correta. É o apego que temos à norma culta padrão da língua portuguesa, aquela que estudamos na escola, cheia de regras.

Quando atuamos como profissionais da escrita, ao contrário do que muitas pessoas pensam, precisamos combater o preconceito linguístico. Principalmente quando nossa escrita guia a experiência da pessoa usuária em um produto digital.

Escrita e experiência

Antes de nos jogar no tema do preconceito linguístico, vamos dar um passo para trás e entender melhor a relação entre escrita e experiência. Quando falamos de produtos digitais, como aplicativos e chatbots, o texto escrito ajuda a pessoa usuária a tomar decisões ali.

Vamos usar como exemplo a tela a seguir, do aplicativo de uma carteira digital.

Arquivo pessoal, registro feito em 2022 — Carteira digital

Ao abrir o aplicativo, você se depara com essa tela. As duas únicas ações possíveis são guiadas por textos escritos: “liberar acesso” e “sair da conta”. Se o texto é bem-sucedido, a pessoa nem percebe que está realizando uma leitura.

Contudo, se a pessoa não entende uma das palavras usadas ali, isso inviabiliza qualquer ação no aplicativo. Provavelmente, a pessoa vai fechar o produto e buscar outro meio para realizar a ação desejada — fazer um pagamento, investir, pedir um cartão de crédito, por exemplo.

Em chatbots, a relação entre escrita e experiência fica ainda mais evidente. Observe o exemplo a seguir, de uma conversa por meio do WhatsApp. Nela, uma pessoa interage com um chatbot e toda a experiência é feita por meio de texto. Não temos recursos gráficos, como ícones e imagens, para auxiliar a compreensão.

Arquivo pessoal, registro feito em 2022 — Chatbot em WhatsApp

Nesse caso, também, se a pessoa não entende uma construção sintática ou uma palavra, ela nada pode fazer. Ou seja, sem compreensão do texto escrito, não há interação entre pessoa usuária e produto digital e, consequentemente, a experiência é drasticamente prejudicada. Diante disso, fica a dúvida: e quem não sabe ler, como fica?

Língua falada vs. Língua escrita

Nesse mundo de escrita para produtos digitais, precisamos sempre nos lembrar de um detalhe: não nascemos sabendo escrever. Para aprender isso, precisamos de anos de estudo formal, nas escolas. Já, a língua falada é aprendida naturalmente — desde que tenhamos contato com ela, claro.

E, mesmo depois de anos de escola, é comum que uma pessoa não consiga ler e compreender verdadeiramente todas as informações. Tanto isso é verdade, no Brasil, que, em 2018, apenas 12% da população alfabetizada é considerada proficiente em leitura. Esses são dados do Inaf, instituto que avalia o nível de alfabetismo no país.

E todas essas pessoas falam português, se comunicam oralmente em português e, provavelmente, sem entraves. Percebeu aí o problema: digamos que todo mundo aprende a falar, mas nem todo mundo aprende a ler e escrever.

Agora, se pensarmos que parte da vida das pessoas é resolvida por textos escritos, não ler e escrever de maneira proficiente se torna um problema existencial. Vale pensar nas vezes em que precisamos resolver questões em aplicativos de banco ou do governo.

E como as pessoas que escrevem para aplicativo, UX Writers, podem agir nesse contexto? Simples, ouvindo quem usa o serviço ou produto para qual se está escrevendo, entendendo o modelo cognitivo dessas pessoas e levando em conta esses conceitos na produção de textos e experiências.

Língua portuguesa falada, o preconceito passa por ela

Na Língua Portuguesa, temos uma grande diferença entre língua falada e língua escrita. Para confirmar isso, basta lembrar que a letra ‘R’ ao fim de verbos no infinitivo — amar, por exemplo — quase nunca é pronunciada.

E está tudo bem no mundo da fala, isso já é tão corriqueiro que, por vezes, nem percebemos. Contudo, esse comportamento, na escrita, é considerado erro de grafia. A pessoa que escreve ‘amá’ no lugar de ‘amar’ raramente escapa de algum julgamento.

E o que isso tem a ver com o preconceito linguístico? Você pode estar se perguntando. Tudo! Afinal, a pessoa que escreve ‘amá’ pode ser ridicularizada, ter sua imagem associada a classes sociais com baixa escolaridade, entre outras situações constrangedoras.

Até circulam histórias no mundo web de relacionamentos afetivos que foram finalizados porque uma das partes escrevia como falava, nas mensagens instantâneas de texto que enviava. Por aí notamos o poder da língua escrita.

E como evitar isso? O primeiro ponto é entender que não existe certo ou errado, existe, sim, adequado ou não adequado para o contexto de comunicação. Voltando à comunicação por mensagens instantâneas, como o WhatsApp, será que é realmente inadequado escrever cometendo infrações à norma culta sendo que ali é simulada uma comunicação falada?

Preconceito Linguístico, o que é, afinal?

O preconceito linguístico que existe no Brasil é um reflexo das questões sociais com as quais nos deparamos diariamente. A existência de uma classe dominante, com determinadas características, leva a contarmos com uma língua culta padrão, e, consequentemente, a um falante culto.

Até o início dos anos 2000, tínhamos até uma nomenclatura para quem, idealmente, conhecia e aplicava no dia a dia a norma culta padrão para se comunicar: falante culto. Uma característica importante para esse tipo de pessoa era ter o ensino superior completo.

Não sei se isso continua hoje em dia. Mas o fato de existir critérios sociais atrelados à definição de um falante culto, ou seja, aquele que usa a língua em sua forma mais próxima à gramática normativa, já nos mostra como sociedade e língua caminham, ou deveriam caminhar, juntas.

Marcus Bagno, linguista brasileiro, em seu livro Preconceito Linguístico, nos faz refletir sobre o círculo vicioso do preconceito linguístico. Para ele, são quatro os fatores que perpetuam o preconceito linguístico: ensino tradicional, gramática tradicional, livros didáticos e comandos paragramaticais.

Assim, os três primeiros se alimentam mutuamente. O ensino tradicional da Língua Portuguesa se baseia no que prescreve a gramática tradicional, por isso os livros didáticos a têm como base para suas metodologias de ensino.

Como quarto elemento, podemos ver a mídia de maneira geral, que reforça a ideia de haver uma língua de prestígio sempre que enaltece um material apresentado como Guia de Escrita, Manual de Erros ou que apresentam em seus textos a ideia de que, no Brasil, falamos o português errado.

Preconceito Linguístico e UX Writing

Agora que você já conhece um pouco mais sobre o preconceito linguístico, vamos ver como podemos usar UX Writing para mitigar esse mal. Afinal, a escrita para a experiência precisa ser clara e, se possível, passar despercebida — a pessoa nem percebe que está lendo.

1. Conhecer a pessoa usuária

O primeiro passo para uma escrita que passa despercebida é conhecer para quem você está escrevendo. Isso inclui considerar que ela pode ter baixa escolaridade e ler com dificuldade.

Outro ponto interessante é a questão regional, em termos geográficos — os regionalismos. Sabemos que o Brasil é um país continental, e que uma palavra pode ter significados diferentes no Rio e em São Paulo. Basta pensarmos na grande polêmica: biscoito ou bolacha. Biscoito para os cariocas, bolacha para paulistas.

Com esses conhecimentos, conseguimos selecionar melhor os termos a serem usados no produto. Além disso, conseguimos antecipar possíveis problemas de compreensão vocabular.

E, assim, voltamos à questão da adequação. Aqui identificamos o que é adequado para quem vai usar o produto, não o que é gramaticalmente correto ou que julgamos ser o melhor. Pessoa usuária no centro, sempre!

2. Fazer pesquisa com pessoas usuárias

Esse passo está atrelado ao anterior. Para conhecer as pessoas que usam nosso produto e entender o que é adequado ou não, precisamos fazer pesquisas com e sobre elas. E, nessa hora, temos que nos despir de todo tipo de preconceito.

E usar as palavras e estruturas sintáticas que as pessoas usuárias usam é, também, uma forma de combate ao preconceito linguístico. Além disso, colocar no produto termos próprios de quem o usa é uma forma de aproximação entre marca e cliente.

É, ainda, uma forma de acolhimento e inclusão. Ainda mais quando pensamos em produtos que têm, em sua essência, termos técnicos e pouco usados no dia a dia, como empresas de seguro.

Entender como as pessoas se referem a sinistro, por exemplo, e usar o termo no aplicativo de uma seguradora pode, até, com que mais pessoas contratem o serviço oferecido. E só descobrimos isso, fazendo pesquisa e analisando as interações das pessoas com o produto.

3. Descomplicar a vida de quem lê

Como vimos, a leitura não é um ato natural de uma pessoa. Quando lemos, estamos forçando nosso cérebro para decodificar a informação, interpretá-la e promover uma ação a partir do que foi lido.

A partir dessa ideia, UX Writing tem como premissa diminuir o esforço cognitivo de quem lê. A interação com o produto precisa ser fluida e leve, o que um texto cheio de palavras técnicas, frases longas e subordinação sintática não propicia.

Assim, se, para diminuir a carga cognitiva da pessoa usuária, for preciso infringir algumas regras gramaticais, vale considerar essa possibilidade . Facilitar a vida de quem lê precisa vir antes de qualquer conceito de certo ou errado que possamos ter.

Quando descomplicamos a vida de quem lê, estamos, também, incluindo. Afinal, escrita também é acessibilidade e precisa ser para todas as pessoas.

Preconceito linguístico e produtos digitais

Como você chegou até aqui, já sabe que preconceito linguístico, além de todo o mal que a palavra preconceito traz consigo, é, também, perda de dinheiro. Afinal, por meio da dita correção gramatical e pela seleção vocabular, excluímos pessoas. E, quando impedimos pessoas de usarem um produto digital, perdemos receita.

Por todas essas questões é que UX Writing é um meio para o combate ao preconceito linguístico. Então, quem escreve para a pessoa usuária precisa se colocar no lugar dela, entender como pensam e, principalmente, se comunicam.

Assim, de fato, vamos conseguir reduzir um pouco dos tantos preconceitos que existem. E, ainda, promover mudanças por meio da escrita em produtos digitais.

--

--

Priscilla Santos Motta

Em constante aprendizado. UX Writer, designer conversacional e professora. Encantada por linguagem, tecnologia e chatbots.